Bem comparando, a bossa nova, há 50 anos, teve a mesma importância para o Brasil que o manguebeat, há 15 anos, em Pernambuco. Ambos, o Brasil e Pernambuco, estavam precisando de um cateterismo para que o sangue circulasse livramente, arejando as células do cérebro. Brasil e Pernambuco nunca foram mais o mesmo depois da BN e do manguebeat, aliás. E de todas as homenagens prestadas à bossa nova este ano, a única que ressalta a revolução cultural promovida pela batida do violão de João Gilberto, as melodias de Tom Jobim e letras de Vinicius de Moraes foi feita pelo baiano Tom Zé com o disco Estudando a bossa.
Tom Zé, aos 72 anos, impressiona não apenas pela vitalidade, mas pela imprevisibilidade. Se o país já teve algum músico que se assemelhe ao hoje pouco falado Frank Zappa é este iraraense, que subverte regras, continua correr riscos e segue na contramão como se os outros é que estivessem na mão errada. Tom Zé inicia sua apresentação por onde a maioria termina, ou seja, apresenta logo a banda. E aí começou o show, que foi uma aula de música popular, esmiuçando a bossa nova, desde os primórdios, dando a partida com Filho do pato. A música acabou numa batida sincopada, mas no tempo “errado” de João Gilberto. O autor de São São Paulo meu amor, de roupa branca, contrastando com um avental com as linhas sinuosas da calçada de Copacabana, cantou uma canção paulistana, Augusta, Angélica, Consolação, e em seguida duas canções cariocas. Se o disco Estudando a bossa é um dos melhores já feitos por Tom Zé, no palco ele é ainda melhor. O show é um musical conceitual. Os banquinhos, móvel que a bossa nova colocou em evidência, são espalhados diante dos microfones. Tom Zé desconstrói, literalmente, um violão, para contar como a bossa nova derrubou a Rádio Nacional, em O céu desabou.
A única coisa previsível num show de Tom Zé é o imprevisível. Se O céu desabou foi inspirada em Os persas, de Ésquilo, ele apresentou as duas próximas canções citando Plutarco e sua Vidas paralelas, começando com uma ironicamente cândida interpretação de Brigitte Bardot, emendando com Ogodô (com coral). A música de Estudando a bossa é para se escutar prestando muita atenção, lendo nas entrelinhas, porque nunca se colocou tanta citação num único disco. O bolero de Platão, por exemplo, está cheia delas.
Assim como a BN, Tom Zé continua praticando a antropofagia musical, apontando insuspeitas qualidades em música de “terceira” como o funk Tô ficando atoladinha, que ele provou por A mais B que tem um refrão revolucionário, porque cantado em micro tons. O “Tô ficando atoladinha” seria um mega refrão (e plurisemiótico). Ele, baianamente, não consegue parar de falar, até mesmo entre canções. Faz comercial de si mesmo, anunciando que sua mulher, Neusa, está na entrada do teatro vendendo CDs e DVDs seus. A platéia, teatro lotadíssimo, assistiu hipnotizada àquele senhor magro, baixinho, que lembra um personagens de Dickens, incansável no palco, interagindo com o distinto público, com a banda, com si próprio.
(José teles - Jornal do Commercio)
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